domingo, 1 de março de 2009

POEMA DA NOITE

Num monumento à aspirina - João Cabral de Melo Neto

Claramente: o mais prático dos sóis, 
o sol de um comprimido de aspirina: 
de emprego fácil, portátil e barato, 
compacto de sol na lápide sucinta. 
Principalmente porque, sol artificial, 
que nada limita a funcionar de dia, 
que a noite não expulsa, cada noite, 
sol imune às leis de meteorologia, 
a toda hora em que se necessita dele 
levanta e vem (sempre num claro dia): 
acende, para secar a aniagem da alma, 
quará-la, em linhos de um meio-dia.

 

Convergem: a aparência e os efeitos 
da lente do comprimido de aspirina: 
o acabamento esmerado desse cristal, 
polido a esmeril e repolido a lima, 
prefigura o clima onde ele faz viver 
e o cartesiano de tudo nesse clima. 
De outro lado, porque lente interna, 
de uso interno, por detrás da retina, 
não serve exclusivamente para o olho 
a lente, ou o comprimido de aspirina: 
ela reenfoca, para o corpo inteiro, 
o borroso de ao redor, e o reafina.

 

João Cabral de Melo Neto (9 de janeiro de 1920, Recife – 9 de outubro de 1999, Rio de Janeiro) foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, caracterizada pelo rigor estético, com poemas avessos a confessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. Leia mais sobre João Cabral de Melo Neto.

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